quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Adélia. [conto premiado em Portugal]


Nasceu prematura, Adélia. A última dos irmãos. Conheceu o pai através da memória da mãe e das medalhas que recebeu como herança deste combatente de guerra que dera-lhe a vida, cujo sonho era ver a filha casada com um general.
Adélia perdeu a mãe para a bebida e a virgindade para os irmãos, os quais transformavam os momentos dentro de casa como uma batalha a ser vencida por Adélia todos os dias, mas ela sempre perdia, e coagida, vivia nesta inércia, tentando preservar sua vida pelo troco do próprio silêncio. A culpa era sua companheira, o espelho que retratava sua beleza genuína também refletia sua angustia em sentir-se culpada pelo estupro recorrente de seu corpo, da sua alma, da sua vida. Adélia via sua beleza como uma arma apontada a si, como uma inimiga sem escrúpulos.
Apesar de sentir-se presa a uma vida de dor e abusos, havia um único momento em seu dia em que Adélia se sentia tocada por aquilo que acreditava ser felicidade, quando o relógio da repartição em que trabalhava marcava doze horas... seu coração desobedecia qualquer ritmo, todos seus sentidos por demasiado sentir quase anestesiavam-se, as pupilas ditalavam-se, porque mais do que enxergar, Adélia queria alcançar aquela que fizera parte dos seus mais sublimes sonhos: a única pessoa a quem Adélia dispensava consideração ou para quem preocupava-se em se tornar uma pessoa melhor. Era o único amor de Adélia, quieto e majestoso, sentimento desprovido de dor (talvez o único) em que ela se felicitava ao sentir à flor da pele os póros dizendo-lhe que toda a descarga do corpo era o aviso que havia vida dentro de si. E a vida de Adélia tinha nome: Anita!
Aquele seria um dia especial para Adélia, era o momento em que sabia ela estar prestes a se entregar às suas duas prisões: uma delas seu amor a Anita, do qual jamais queria livrar-se, a outra ainda estava por vir, e não havia como escapar.

Foi então que as palavras de Adélia ganharam espaço sobre a mesa de Anita, num pedaço de papel que certamente seria encontrado mais tarde : “hoje não há um só pedacinho em mim que dê lugar a qualquer outra coisa senão a você. Você que é linda, é de-fi-ni-ti-va-men-te a mulher mais linda do mundo, não só do meu mundo que é pequeno, mas é do mundo todo, de todos os mundos que existem. Você deixa o oceano parecendo uma poça e consegue fazer-me grande. Quando entra na repartição e pede que eu a ensine qualquer coisa, me sinto como se estivéssemos em lua-de-mel, não importa se és comprometida com alguém, pra mim você é minha. E será minha ate o ultimo dia da minha vida, porque o primeiro foi você quem me deu. Desculpe-me se pareço inconveniente, mas essa foi a oportunidade que encontrei de toca-la com o meu amor, ainda que ele exista somente em mim, é grande o suficiente para nos amamentar. Mesmo que meus passos incertos me levem para muito longe de ti, saibas que estarei sempre contigo, talvez em silencio, mas sempre te amando, desde sempre.

Sua Adélia”.

Fechou a porta e seguiu seu destino, ganhando o caminho da rua, sentindo-se livre indo em direção a sua segunda prisão.

Adélia sempre soube que o céu é o lugar dos bons, e o inferno, dos homens. Nunca se sentiu verdadeiramente nada, nem bom, nem homem, apenas inquestionavelmente apaixonada, a vida dera-lhe apenas esse único direito e seus olhos não desperdiçaram um só segundo a mirar qualquer outra coisa senão Ela. ANITA estava lá. Totalmente lá, inenarravelmente linda, sobre o salto alto que a engrandecia ainda mais. Adelia, procurando conter-se atras daquelas grades, sentiu-se genuinamente um bicho, com sede da preza, mirando-a cautelosamente sem menosprezar nenhum detalhe. Que barulho delicado vinha daqueles sapatos. Cada passo era um orgasmo, cada batimento era um tiro em todas as desilusões, porque nada mais importava. Adélia estava atenta, estática como uma montanha (não como uma pedra), ao segundo momento de sua vida onde sentiu-se descaradamente livre. Não importava mais as circunstancias que a levaram àquele calabouço, vivera toda a vida em um, e sabia que era ali onde passaria o resto dos seus dias. Por toda a vida teve âncoras nos pés, mas agora, sentada sobre nuvens, permitiu-se amar e ser amada. Um filme passou pela sua cabeça. Para a sociedade era ela a antagonista, a “sem a mínima compaixão pelos irmãos” como dera na manchete. Adelia com tiros certeiros matou todo seu passado, ganhou a guerra, teve mais sorte que o pai. Para a tranquilidade dos civis engravatados, cumpriu-se o dever, prenderam a fera, fez-se justiça. E fez-se mesmo, para Adelia com direito a duas balas, assim ela rebatia. Seu presente não poderia ter sido melhor. A vida que outrora tirara-lhe qualquer pedaço de vida, agora dava-lhe o troféu. Era Ela. O essencial vindo em sua direção, do pedestal ao chão. As grades não impediram, nada impediu. Aquele foi o silencio mais ensurdecedor, o abraço mais raro, o beijo mais cúmplice, o único amor de Adelia. E bastou, ela não precisava de mais nada.

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