quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Eu cumi minha vó - por a.martinelli



“O calor do sertão desmiola o homem”, isso foi o que disse meu vô inté sumir no mundo, e me alembro que no dia de seu desaparecimento caiu uma chuva que ninguém via há um punhado de tempo. E meu vô tava certo, o bicho homem tem de ser muito mai bicho que homem lá no sertão. Vivi dezoito anos naquela terra de ninguém, comeno farinha com alguma coisa que vez ou outra a mãe conseguia achar por aquelas estradas de terra e solidão. A casinha nossa era pequena e nem precisava de tamanho, a família era tão mirrada que em qualquer lugar que punhasse rede a gente se ajeitava, e era só eu, mãe, vó e Tiquinha, a caçula que vingou, além de mim. Meu vô num conta porque sumiu logo no galope do cavalo, que inté hoje não se sabe como ele conseguiu o diacho do quatro pata, e tenho comigo que se fosse um homem digno, tinha de matado o coitado do bicho pra mata a fome da família. Mas a família continuou com fome, não cabe a gente mai julgá a cabeça do homem, o sertão tem dessas coisa, onde se mata por um teco de mandioca ou quando o Bicho deserda a família a vai simbora, assim como fez o vô e também o pai, que de herança deixou o casebre que, como dizia a mãe, foi erguido com o suor do pai do vô, que esse sim, foi cabra pra ninguém aponta o dedo. E no meio desses abandono, de homem mesmo só sobrou eu, que despois da morte da mãe, pra não fazer diferente do vô e do pai, também deixei a indecência do sertão lá memo no sertão. Me despachei de estrada em estrada inté chegar nessa cidade, donde acabei por me separar da Tiquinha, que veio mais eu, inté encontrar outro cabra que lhe desse mai do que cumê além de farinha. Do dia que sai de lá inté hoje, sei que passou muito verão, e às vezes quando paro e fico quietinho, ainda percebo que a gente pode inté sair do sertão, mai continua meio desmiolado. Porque é certo que a vida que se vive lá é bem muito mai difícil de esquecer, inté porque o corpo num deixa a gente esquece e a cabeça também não. Daí que quando eu to assim quietinho e alembro das coisa que fui veno quando eu crescia é que dá um aperto no peito, mai como já disse, que lá ninguém pode julgá ninguém, nem Deus, porque ele leva a gente pra lá e despois se esquece. O senhor me perdoe, seu moço, eu truxe comigo a força do sertanejo, mai vou lhe contar um segredo, que no calor daquele silêncio que só no sertão se encontra, o sertanejo também chora, e chora quando sai de lá também, quando consegue sair, porque quer saber bem da verdade, a gente pode inté sair do sertão, mai o sertão não sai da gente. E dizem que as coisa que acuntece no sertão fica no sertão, mai num é bem assim que as coisa funciona, porque cada vez que sento diante de um prato de comida, não importa se ta quente ou fria, inté hoje me alembro do dia que cumi a minha vó. E se digo isso num é de jeito nenhum porque esse fazer me deu algum orgulho, mai foi por pedido do corpo memo, e nem fui só eu que cumi, mãe mai tiquinha também cumeram. Num tinha o que faze, seu moço, a fome era maior do que todo o calor do sertão junto. A vó tava lá, sentada que nem se mexia, e a tiquinha enchia o cabelo da véia de nó que ela nem reclamava, se bem que lá no sertão a gente já tem custume de num reclamar porque senão parece que a vida desanda mai ainda. E a vó num ligava, tiquinha tinha essa mania de fazer nó no cabelo dos outro, que chegava inté a irrita a gente, mai dava dó, depois que a bichinha descobriu que o cabelo dava mai nó que o fiapo de uma espiga que apareceu lá, aí que a danada se encantou com a atividade, inte esqueceu a espiga. E nesse dia tiquinha fez tanto nó no cabelo da vó que inté eu já tava que ficando avechado que a mardita da brincadeira num cessava. Foi quando a mãe, lá pelo finarzinho da tarde, que sorto o único palavriado do dia: “Tiquinha! “ , e num falô mai nada, e nem precisava, porque lá no sertão a gente aprende fazeno mai do que falano, e tiquinha já tinha aprendido que bastava vim seu nome da boca da mãe de maneira desgostosa que a danada já entendia que a mãe não tava de aprovação. E foi quando que a bichinha com medo de levar um solavanco, saiu correno pra modo de não deixa que a mãe lhe aplicasse o corretivo doído. E foi, seu moço, que nessa saída ligeira da menina, que o nó do cabelo da vó grufunhô no dedo da bichinha, que o toco virou derrubano a vó no chão rachado. O diacho da menina olhou no meu olho com o pedido de socorro porque sabia que dali em diante o corretivo ia ser pior, primeiro por causa dos nó, despois por tentar fugir da mãe e despois pela provocação no derrubamento da vó. Inte eu fiquei com medo, quando senti por de tras de mim o passo firme da mãe com o barulho da varinha que a mãe trazia pra isquentá a bunda da tiquinha, e quando foi minha surpresa quando a mãe pegou a varinha e cutucou a vó porque ela ainda continuava sem se mexer. O olhar da mãe nunca mais que vou me esquece, olhou pra mim e despois olhou pra tiquinha, despois olhou pra cima, inté hoje num sei se pra pedi perdão ou acertá de uma vez as conta com Deus. Eu sei, seu moço, que a mãe largou a varinha, pegou a vó no colo e me mandou acender uma fugueira. Levou a vó lá pra tras do casebre e mandou a gente se deita que o sol tinha se ido. Eu e tiquinha entramo na casa sem fazer questionamento. Acho inte que tiquinha dormiu aliviada porque não apanhou nadica, mai eu fui dormir cabrero pensando no que a mãe ia faze com a fugueira. Veio o outro dia, o calor derretante desde cedinho avisava que seria mai um dia sem chuva. Mai aquele dia foi diferente, porque a farinha veio acompanhada dum tiquinho de carne. E eu inte pensei se era a vó, mai fiz de conta que num pensei pra não causá desavença com a mãe. A tiquinha perguntou da vó, mas já tava tão acostumada com o silêncio da mãe que nem se avechou com a falta de resposta. Eu sei, seu moço, que comemo carne por uns dia, mai também não durou muito de modo que a vó já tava mai pra osso do que pra carne, mai melhor assim também, cê já pensou se a vó fosse taluda? E nois ia fica cumeno por muito mais tempo, capaiz que daí Deus num perdoasse eu mais a mãe, a tiquinha acho que deus perdoava de quarqué jeito. E quem sou eu pra dizer se a mãe agiu certeiro? Já falei que no sertão num tem julgamento. E ó, que agora que lhe conto essa desgraça de vida, tenho comigo um pensamento que nunca tinha pensado, que talvez Deus inté se alembre da gente quando tá no sertão, e que se num se alembra o tempo todo é porque anda ocupado por demais com o povo da cidade, porque se num lembrasse nunca, num tinha permitido o fugimento do vô... Por que cê já pensou, moço, se o vô tivesse ficado no sertão? ele tinha de ter comido a própria muié e por vários dia, num é memo? E eu acho que Deus inté que perdoa eu, a tiquinha e a mãe, mai num perdoava o vô. .
Mai vamo simbora, que quando chove assim, inda mai despois do expediente, é que gosto de ficar quietinho, deitá no chão de asfarto e abrir a boca de modo que os pingo caia dentro, como era rezado por mim, lá no sertão, memo na farta de Deus.

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